quinta-feira, 3 de abril de 2008

Como a justiça francesa perdoou uma mulher que matou a sua filha

Era muito estranho, até mesmo incongruente, ouvir aquelas palavras, naquele lugar específico, naquelas circunstâncias. E mesmo assim, quando o advogado da defesa, William Bourdon, se referiu aos "momentos de graça" que as pessoas presentes acabavam de vivenciar, ninguém pestanejou. Nem a presidente do tribunal, Edith Dubreuil, nem os assistentes, nem os doze jurados que estavam em volta deles, nem o representante do ministério público que auxiliava o procurador geral, nem a família, os amigos e o público que haviam comparecido para assistirem ao processo de Eva Martinet perante o Tribunal do Júri de Apelações de Paris.

Em 10 de outubro de 2003, na hora do lanche da tarde, no parque de La Courneuve, esta jovem mulher bonita e frágil amarrou um barbante de lã em volta do pescoço da sua
filha, Cady, de 7 anos de idade, e a estrangulou. Então, ela alertou alguns passantes, contando-lhes que ela havia perdido a sua filhinha no jardim. Ela também disse a mesma coisa à guarda do parque, aos policiais que chegaram prontamente, ao delegado que a ouviu, à sua melhor amiga, a todos os seus parentes que compareceram para lhe dar o seu apoio. Ela repetiu mais uma vez esta declaração quando a noite havia chegado, depois do corpo sem vida da menina ter sido encontrado num pequeno bosque. Aquilo durou treze dias. O tempo necessário para enterrar Cady. Então, em 23 de outubro, dirigindo-se ao delegado Jean-Luc Michel, que acabara de colocá-la sob regime de prisão preventiva, Eva Martinet pediu para falar com ele "a sós".

E ela confessou. "Eu estava sentada não longe do pequeno bosque. Cady quis construir uma cabana. Ela queria montar uma casa para mim. Ela estava cortando os galhos dos arbustos e então os plantava na terra. Quanto a mim, eu estava pensando na vida, sem objeto preciso. Eu olhava para Cady que estava brincando e tive o sentimento de que eu não estava conseguindo torná-la feliz. Tirei o meu trabalho de costura e as minhas agulhas da minha bolsa e comecei a tricotar. Num dado momento, Cady aproximou-se e sentou-se ao meu lado; ela pediu-me um pedaço da linha de lã. Ela me disse: 'Mãe, sabe que daria para fazer colares com isso? ', apanhando o barbante de lã e colocando-o em volta do meu pescoço. Então, ela repetiu o mesmo gesto nela, colocando o barbante em volta do seu pescoço. Ela me disse: 'Olha só como fica bonito'. Ela estava agachada entre as minhas pernas, de costas, e estava inclinando a cabeça em minha direção. Eu olhei para ela e disse: 'Sim, é bonito'. Eu estava segurando o barbante de lã com a ponta dos dedos. Então, eu não sei o que deu em mim. Fui apertando, apertando sempre com mais força; ela disse que isso a estava machucando. Eu tive vontade de aliviar a pressão, mas, ao mesmo tempo, eu não consegui suportar a idéia de que ela me criticasse por ter tido a intenção de machucá-la e continuei apertando durante um tempo que me pareceu uma eternidade. Bem que ela tentou se desvencilhar do fio, mas ela não conseguiu. Eu continuei apertando, até que ela parasse de se mexer".

Em junho de 2006, o tribunal do Júri de Seine-Saint-Denis (região parisiense), em Bobigny, condenou Eva Martinet a dez anos de reclusão. A jovem procuradora substituta que conduzia a acusação havia recomendado uma pena de vinte anos. O ministério público recorreu do veredicto, considerado como clemente demais. E Eva Martinet compareceu perante novos juízes, em Paris, de 28 a 31 de março.

Foi preciso recomeçar tudo. Procurar novamente por elementos de verdade, avançando às cegas na escuridão gélida do infanticídio, progredindo passo a passo no negrume da vida desta jovem mulher que tinha 27 anos no momento em que os fatos ocorreram. Nós estávamos tão longe desta mulher chamada Eva Martinet. Do seu desespero pesado demais para ser compartilhado, da sua existência trágica demais para ser abordada com discernimento, do seu crime grave demais para ser compreendido. Mas ela estava ali, no banco dos réus, e estava contando o seu nascimento, de um pai francês, um funcionário internacional encarregado de programas de desenvolvimento na África, e de uma mãe originária do Mali.

Ela também contou de que maneira ela foi arrancada, aos 2 anos, da sua família materna, para ser agregada a uma nova família em Burkina
Fasso pelo seu pai com uma outra mulher africana. A sua infância de menina mal amada pela sua madrasta, no meio da irmandade recomposta dos oito filhos do seu pai, oriundos de quatro uniões diferentes. A sua adolescência de órfã, depois da morte brutal do pai, e a sua chegada à França onde ela passou a morar na casa de tutores. A sua vida de excessos e de andanças sem rumo de jovem mulher. Os seus amores infelizes. A sua gravidez, que ela viveu de maneira solitária depois de uma relação passsageira. O seu retorno à África, onde ela deu à luz e começou a criar a sua filha. As suas esperanças, logo aniquiladas, de construir uma família, junto com um homem que se revelara violento. E depois, a sua instalação na França, junto com Cady, uma criança atormentada, que enlouquecia as suas professoras.

Então, compareceram para depor pessoas que ela encontrara no caminho. Todas elas heroínas ordinárias. Primeiro, as suas duas amigas. Jovens mulheres da sua idade, também mães. A sua incompreensão diante do gesto de Eva Martinet era tão grande quanto era sólido o afeto que elas nutriam por ela. Elas contaram como era a "outra" mãe. Aquela que vivia exclusivamente para e por causa da sua filha Cady, que lhe proporcionava tudo o que ela podia e nunca brigava com ninguém. Aquela que ficava calada quando as coisas não iam bem e que tranqüilizava o seu interlocutor no telefone quando este se dizia preocupado com ela.

Mais adiante no processo, compareceu a diretora da escola de Cady, Christiane Parrat. Ela começou a falar, e o silêncio tomou conta do tribunal. Eva Martinet havia provocado uma mudança brutal em sua vida, e as palavras desta diretora provocaram uma mudança brutal na platéia. Na manhã de 10 de outubro, Christiane Parrat atendeu à ligação no telefone da escola. Do outro lado da linha estava Eva, que lhe pedia para abonar a ausência da sua filha. Eva não havia ousado confessar-lhe que ela não conseguira despertar em tempo hábil porque, havia algumas semanas, a sua vida se tornara difícil demais e ela não estava mais conseguindo dar conta da situação. Ela havia alegado que a menina estivera doente durante a noite, e acrescentado que ela a manteria perto dela, uma vez que naquele dia a sua classe tinha um passeio programado.

Christiane Parrat não havia desligado imediatamente. Ela havia aproveitado a oportunidade para dizer-lhe que Cady estava enfrentando graves dificuldades nos seus estudos e na sua convivência, e que era da maior importância organizar uma reunião na escola, para discutir sobre esses assuntos. "Sim, eu sei...", havia sussurrado a mãe. "Como a gente consegue ser tão estúpida! Como a gente consegue ser tão estúpida! Fiquei tão zangada comigo mesma, senti tanto remorso por não ter lhe explicado as coisas de outra forma, por ter passado tão longe de um desespero tão grande, e não ter me dado conta de nada. Eu creio que esta mãe se sentia confrontada a um fracasso. E as mães em situação de fracasso, elas nunca costumam fazer hora na saída da escola. A escola, em casos como este, tem uma responsabilidade e tanto. Como explicar as coisas, como ajudar uma mãe? Isso é tão difícil...", contou a diretora no tribunal.

No dia que se seguiu ao drama, quando o delegado Michel havia se apresentado na escola para ouvi-la, Christiane Parrat lhe havia dito: "O senhor precisa saber de uma coisa; eu penso que foi a mãe que matou a sua filhinha". Contudo, apesar desta "sombria intuição", ela havia se dedicado a tomar todas as providências. Preparou a cerimônia que fora organizada em memória de Cady na cidade, recolheu as mensagens que os seus colegas de classe haviam escrito e que ela juntou numa pasta para levá-las para o enterro, que foi realizado numa pequena aldeia da Drôme. Ela havia juntado ao calhamaço uma carta para Eva, na qual lhe escrevia que, pouco importando o que havia acontecido, ela sempre estaria presente para Eva, que esta podia contar sempre com ela.

Duas semanas mais tarde, Christiane havia recebido uma extensa resposta desesperada, na qual Eva lhe pedia perdão. Aquela resposta deu início a uma troca de correspondência que, desde então, nunca foi interrompida. "Eu sou laica, mas, uma vez que agora estou aposentada, posso afirmar que eu sou também muito crente", confessou a antiga diretora de escola, quase que pedindo desculpas ao tribunal. Quando ela concluiu o seu depoimento, o representante do ministério público, François-Louis Coste, levantou-se. Ele não tinha nenhuma pergunta adicional a fazer. Apenas fazia questão de agradecê-la.

Arlette e Michel Bordes também são dois conhecidos que cruzaram o caminho de Eva. Ele era um amigo de infância do pai de Eva. Como pais de quatro filhos, eles fizeram dela a sua "filha do coração" e eles nunca pararam de ajudá-la. Quando ela retornara à França, eles a receberam em sua casa e a hospedaram junto com a sua filhinha durante um ano. Eles também nutriram enorme remorso por não terem sido informados das suas dificuldades e ficaram zangados por ela não ter lhes contado nada. Contudo, desde outubro de 2003, eles vêm se revezando para visitá-la uma vez a cada quinze dias na prisão. E eles contam no seu depoimento que gostam muito desta jovem mulher que está fazendo tudo para superar essa situação. Eles afirmam simplesmente que "com toda evidência, quando ela será liberada, (eles) estarão na saída para acolhê-la". De tanto trocarem mensagens com ela, Eva Martinet havia se tornado uma amiga íntima deles. Mais uma vez, o representante do ministério público levantou-se. "Eu estou muito impressionado pelos seus depoimentos. Era importante que tudo isso fosse dito".

Na segunda-feira, 31 de março, François-Louis Coste levantou-se uma última vez. Naquele instante, ele é o representante de um ministério público que recorreu da condenação de Eva Martinet à pena de dez anos de prisão. Ele lembra que, por conta do crime que ela cometeu, ela poderia ser condenada a prisão perpétua. "Isso evidencia o quanto o tribunal do júri de Bobigny se mostrou indulgente", observa. Mas ele acrescenta: "A justiça decorre de palavras, de olhares, de sofrimentos das testemunhas, da mãe acusada. E os debates me proporcionaram uma certeza: o princípio de indulgência, neste caso, se justifica". Do assassinato de Cady, "esse crime tão enorme que nós temos dificuldades para acreditar que ele possa ser simples", ele passa em revista cada etapa, afasta as sombras suspeitas que pairavam sobre certos aspectos do crime, valida o relato "sem mistério" que dele fez Eva Martinet, que, para ele, estava "totalmente isolada dentro de um jogo de espelhos vertiginoso com a sua filha".

"Então, qual veredicto será o caso de pronunciar?", prossegue. "No que me diz respeito, eu teria recomendado uma pena de quinze anos. Um veredicto já foi pronunciado; este me parece insuficiente, mas ele foi pronunciado por jurados soberanos. Ora, o que se espera da justiça? Um futuro. O veredicto, a palavra verdadeira, é a oportunidade que permite a modificação completa das nossas maneiras de enxergar o ocorrido, e que convida o crime para tomar o seu lugar nos sofrimentos da experiência. Sim, eu teria requerido quinze anos. Mas o respeito da justiça e as suas funções simbólicas fazem com que não haveria nada chocante em ver os senhores confirmarem o veredicto que já foi pronunciado. O que nos interessa aqui não é saber se a ré merece uma pena maior. O que está em jogo é que uma boa justiça seja pronunciada".

Algumas horas intermináveis mais tarde, o Tribunal do Júri de Apelação de Paris condenou Eva Martinet a dez anos de prisão. Antes que ela fosse conduzida até o seu cárcere, os seus parentes e seus amigos pediram para poder abraçá-la. A porta da cela do tribunal foi entreaberta por alguns instantes, deixando aparecer uma mulher que, naquele dia, estava completando exatamente 32 anos.

Texto de Pascale Robert-Diard
Tradução: Jean-Yves de Neufville
Fonte: site do Le Monde

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